segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES DA “IN BUST – TEATRO COM BONECOS”: resíduos sólidos de uma mitoanálise.

Anais: Pele da Arte / Organizadores Lia Braga Vieira, Miguel de Santa Brígida Júnior, Ana Flávia Mendes Sapucahy – Belém: PPGARTES/ICA/UFPA. p. 778-786.


Autoras:
Katiuscia de Sá, hellenkatiuscia@gmail.com. Mestranda acadêmica em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes pela Universidade Federal do Pará; é formada em Jornalismo pela UFPA. Especialista em Educação para Jovens e Adultos/EJA-modalidade Artes; atriz profissional; realizadora amadora do audiovisual paraense.

Wlad Lima, wladlima@ufpa.br. Possui Pós-doutorado em Estudos Culturais pela Universidade de Aveiro, Portugal. Doutora em Artes Cênicas pela UFBA. Atua com professora-pesquisadora na Escola de Teatro e Dança e no Programa de Pós-graduação em Artes ICA \ UFPA. Atualmente, administra o Poética Criatura – Laboratório de Teatro de Porão, situado no centro histórico de Belém. É atriz, diretora e cenógrafa na cidade de Belém do Pará.

Eixo: “1. Poéticas e Processos de Atuação em Artes”.
Pesquisa em andamento em Artes.
Subárea: Teatro.


RESUMO

Mitoanálise da montagem teatral intitulada “Os 12 Trabalhos de Hércules”, feita pelo grupo paraense In Bust – teatro com bonecos. O artigo aponta alguns mitemas detectados ao longo da adaptação feita pelos atores que utilizam bonecos em cena. A análise procura apontar o mito diretivo que caracteriza a história, e também traz à luz como os integrantes do grupo experimentaram recursos cênicos para recontar o mito de Hércules nos dias atuais, focando no público infantil. O procedimento metodológico parte da visão psicanalítica junguiana (uma das bases teóricas adotadas por Gilbert Durand na construção de suas teorias críticas), para então prosseguirmos com a mitoanálise, a fim de comentar os mitemas recorrentes encontrados no mito grego original e que se transferem para a atual adaptação teatral do grupo In Bust, examinado-os brevemente dentro de seu contexto sociocultural e interpretado sob à luz do mesmo. O objetivo desta análise é compreender como se dá a recorrência dos mitos diretivos nas sociedades contemporâneas, de acordo com o pensamento de Gilbert Duran.

Palavras-chave: mitoanálise; grupo In Bust; teatro com bonecos; mitologia grega;

ABSTRACT
Mitoanalysis of the stage production entitled "The 12 Labors of Hercules" by In Bust Group - puppet theater, from Belém/Pará/Brazil. The article points out some mythemes detected along the adjustment made by the actors using puppets on stage. The analysis seeks to highlight the directive myth that characterizes the history, and also brings to light the way how the group members experienced scenic resources to retell the myth of Hercules today, focusing on children. The metodology begins with the Jungian psychoanalytic view (one of the theoretical bases adopted by Gilbert Durand to build his critical theories), and then proceeds with the myth analisys in order to cut the recurrent mythemes found in the original Greek myth that move to the current theatrical adaptation of In Bust group, inquiring them briefly in their sociocultural context and interpreted in the light of it. The objective of this analysis is to understand how is the recurrence of the directive myths in contemporary societies, according to the thought of Gilbert Duran.

Keywords: mitoanalysis; In Bust Group; theater with puppets; Greek mythology;




Escrito por Peisândro de Rodes, cantado num poema épico, por volta de 600 A.C, traduzido para diversos idiomas, incontáveis versões e adaptações, Os Doze Trabalhos foram atribuídos ao semideus Hércules, em romano (Héracles, em grego) por vingança da deusa Hera, esposa de Zeus (deus supremo do Olimpo), pelo fato dele tê-la traído com a mortal Alcmena, cujo fruto deste relacionamento fora Hércules.
Cada reprodução trás a especificidade da linguagem dando à história um tom diferenciado. Partindo desse axioma, em meados de 1970, o antropólogo francês Gilbert Durand desenvolveu um esquema de estudos dos arquétipos e arcabouços do imaginário coletivo encontrados nos mitos de diversas culturas, que ele denominou como “mitocrítica” e “mitoanálise”.
Ambas têm correlação direta com estudos psicológicos baseados na teoria do inconsciente coletivo desenvolvida pelo suíço C. G. Jung (1975 – 1961), servindo ela como apoio para o que Durand atribui ao poder imagético e imaginário das narrativas literárias.
Para efeito didático apresentaremos objetivamente como se aplica a mitocrítica. Ela atua originalmente no âmbito da critica literária, porém, pode ser utilizada para analisar qualquer compreensão onde o caráter mítico da obra esteja embutido, nesse caso, ela então necessita de um contexto cultural para poder ser efetuada, como explica Neves (2001):

A mitocrítica é um método de crítica de texto literário, de estilo de um conjunto textual de uma época ou de um determinado autor que põe a descoberto um núcleo mítico, uma narrativa fundamentadora e o(s) mito(s) que atua por detrás dela. Ela desvela um nível de compreensão maior que se alinha com os grandes mitos clássicos. (NEVES[1], 2001).

Essas “pistas” ao longo do discurso são detectadas através de três fatores que trazem à tona o sentido do mito dominante, são eles: “mitemas”, “mito diretivo” e “texto cultural”.
Primeiro elencamos em uma expressão artística e/ou narrativa mitológica, o que Durand denominou de “metáforas obsessivas”, que são a repetição de aparições de ideias ao longo de um discurso – sejam de forma visual, narrativa e/ou dissimulada – esses são os “mitemas” (as menores partículas identitárias do mito diretivo; ou seja, são as pistas espalhadas ao longo do contexto, que detectadas pelo receptor, refletem a ideia central e dominante do mito diretivo. Os mitemas condensa a mesma verdade do todo presente no mito).
O “mito diretivo” vai se revelando quando fazemos um exame minucioso entre a história da narrativa e as ocorrências combinatórias das situações fictícias com o contexto social atual de onde a história está sendo inspirada ou inserida, isto interfere diretamente em sua leitura e (re)significação simbólica por parte do receptor, sendo que esta associação dá vida ao “texto cultural”.
A mitocrítica trata-se de um método de análise literária embasada em estudos da Psicanálise enfatizando o contexto cultural, já a mitoanálise está mais para uma exame cientifico dos mitos em um contexto histórico maior: o social abraçando o conteúdo antropológico e histórico que o envolve
  Já a palavra mito etimologicamente deriva do grego antigo “mithòs”, referente às narrativas simbólico-imagéticas, relacionadas a uma determinada cultura. O mito está intrinsecamente atrelado ao rito e por isso, normalmente a compreensão dessas narrativas está ligada primordialmente à ação das personagens fictícias, sendo que essas ações ou feitos são utilizadas para explicar o insondável: normalmente coisas que fogem à compreensão ou intervenção humana. De acordo com Junino de Souza Brandão (1986):

[...] o mito não pode ser lógico: ao invés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. E como afirma Roland Barthes, o mito não pode, consequentemente, “ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma”. [...] Uma verdade que esconde outra verdade. [...] É que poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos veem no mito tão somente os significantes, isto é, a parte concreta do signo. É mister ir além das aparências e buscar-lhes os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo. (BRANDÃO, 1986, p. 36-37).

Dito isso, este artigo se propõe realizar uma mitoanálise da peça Os Doze Trabalhos de Hércules, do grupo teatral paraense In Bust – teatro com Bonecos. O procedimento metodológico partirá da visão psicanalítica junguiana (uma das bases teóricas adotadas por Gilbert Durand), prosseguirmos com a mitoanálise, a fim de localizar os mitemas recorrentes do mito grego original nesta adaptação teatral do grupo In Bust, examinado-os brevemente dentro de seu contexto sociocultural e interpretado à luz do mesmo.
Os doze Trabalhos foram uma série de armadilhas para Hércules. Como estratégia, Hera ordenou que o filho bastardo de Zeus ficasse sob as ordens do rei de Micenas, Euristeu (neto do semideus Perseu, e primo de Hércules).
Porém, como um semideus, Hércules tinha uma força extraordinária, e obteve sucesso em seus doze trabalhos: 1) Matar o Leão da Nemeia e tirar sua pele para entregar ao rei Euristeu; 2) Matar a Hidra de Lerna; 3) Capturar a Corsa de Cerineia; 4) Capturar vivo o Javali de Erimanto; 5) Limpar os currais de três mil bois, do rei Aúgias, que há trinta anos não haviam sido limpos; 6) Matar monstros que viviam no lago Erimanto; 7) Levar vivo o Touro Minos, de Creta até o rei Euristeu; 8) Castigar o rei da Trácia, Diómedes (filho do deus Ares), devido ele governar seus súditos com crueldade e tirania; 9) Vencer as Amazonas e dominar a rainha delas – Hipólita, pra poder se apossar do cinturão mágico dela; 10) Matar o gigante Gerião e tomar-lhe a criação de gado; 11) Colher os pomos de Outro do Jardim das Hespérides; 12) Trazer o Cão Cérbero que pertencia ao deus Hades, guardião do Mundo dos Mortos;
Na visão da psicanálise junguiana, que se utiliza do discurso verbal para tecer a compreensão sobre imagens formadas pelo ID[2], as passagens desse mito podem ser associadas ao simbolismo imagético, comparando-as aos arquétipos universais onde habitam os fantasmas interiores inerentes a cada ser humano, como explica a Psicóloga Rafaella Santos Silveira:

[...] o conceito de inconsciente para Jung pode ser dividido em dois, o pessoal e o coletivo. Independente de qual seja, Jung concebia que a linguagem do inconsciente seria por imagens, símbolos e fantasias, por isso seria difícil decifrá-lo, por ser um tipo de linguagem diferente (imagens) da utilizada pela consciência (palavras) [...] As manifestações do inconsciente coletivo aparecem como motivos universais, ou seja, se repetem independente da época ou cultura. Inclusive foi observando isso que Jung chegou à conclusão da existência desse inconsciente. (site http://www.apoiopsicologico.psc.br/).

Sob a ótica junguiana, cada tarefa de Hércules simbolizava um estágio de sua psique a ser desenvolvida e desafiada a superar os obstáculos seguintes, como é o exemplo de matar o Leão da Nemeia e tirar sua pele para entregar ao rei Euristeu. Segundo a análise junguiana, o leão pode ser visto como a construção da couraça emocional que todo ser humano é forçado a forjar em algum momento da vida.
Partindo desse axioma, podemos fazer correlação ao jogo dos arquétipos universais às três crianças (representadas pelos atores Adriana Cruz, Aníbal Pacha e Paulo Ricardo Nascimento) a partir do prólogo da encenação teatral do mito.
Se analisarmos a ação simbólica do jogo cênico que essas três personagens fazem, ao longo da peça, observamos claramente a indicação das couraças emocionais sendo tecidas e modificadas a todo o momento. Vejamos: no inicio do jogo entre os dois “meninos” da peça, detectamos o comportamento patriarcal de ambos quando a “menina” tenta participar da brincadeira. Sendo ela ignorada e repelida pelos garotos, ela então retorna e apresenta uma nova brincadeira onde todos possam participar, estando ela, porém, (disfarçadamente) sempre no comando de tudo. Temos aí revelada a couraça da “mulher maravilha” – a super-mulher: bonita e inteligente, cujo pensamento e astucia devem ser maiores do que o orbe masculino, para que ela sobreviva frente aos preconceitos sociais à sua condição feminina. Podemos fazer correlação a este mitema às próprias ações de Hera ao longo do mito, vistas no espetáculo, onde a força mental e inventividade da deusa surgem como um ato de dominação, ao forjar mirabolantes planos contra Hércules.
De acordo com Herbert Marcuse, em seu livro “Eros e Civilização – uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud”, a humanidade engendrou para si própria um sistema de dominação onde a energia proveniente da libido sexual se reverte para ações realizadoras do trabalho, entretanto a realização do trabalho individual não serve somente para o sustento do próprio individuo. Ele serve para manter uma engrenagem maior, que aliena o próprio individuo através de seu trabalho, como explica o autor:

Para a esmagadora maioria da população, a extensão e o modo de satisfação são determinados pelo seu próprio trabalho; mas é um trabalho para uma engrenagem que ele não controla, que funciona como um poder independente a que os indivíduos têm de submeter-se se querem viver [...] Os homens não vivem suas próprias vidas, mas desempenham tão só funções estabelecidas. Enquanto trabalham, não satisfazem suas próprias necessidades e faculdades, mas trabalham em alienação. (MARCUSE, 197, p. 58).

Aprofundando o conceito da palavra “trabalho”, etimológica origina-se do latim “tripalium” – instrumento utilizado na lavoura, mas que também nomeava um aparelho de tortura de origem romana constituído por três estacas afiadas, usado na Europa em tempos remotos. Contudo, antes mesmo de ser utilizada para designar esta ferramenta de tortura, tripalium, com o sentido de “trabalhar” significava a perda da liberdade, pois na Roma antiga, apenas os escravos trabalhavam.
Composta de “tri” (três) e “palus” (paus). Argumenta-se que desta combinação originou-se também a palavra tripaliare (ou trepaliare), que designava alguém que fora acometido ao tripalium, lembrando que desta raiz romana teriam surgido as demais palavras do gênero, nas diversas línguas de origem latina: trabalho – em português; travail – em Francês; trebajo – em catalão; trabajo – em espanhol; travaglio – em italiano (também associado ao ato da mulher dar a luz); sendo que labor (inglês) e lavoro (italiano) são resquícios de sua etimologia antiga.
A partir do latim, o termo tripalium migrou para o francês arcaico travailler – que também tinha a conotação de “sentir dor” ou “sofrer”. Com o passar do tempo a palavra ganhou força como sendo a mesma coisa que: “executar uma tarefa difícil, árdua” ou “realizar uma atividade exaustiva”. Entretanto, a partir do século XIV o termo passou ao sentido genérico que atualmente temos da palavra trabalho: emprego de forças (mentais, físicas e/ou habilidades) humanas para realizar e concluir uma determinada tarefa.
Ao longo dos séculos perpetua-se a negatividade do termo “trabalho”, através da perspectiva bíblica, pela passagem da Gênesis, quando Deus expulsa Adão e Eva do Paraíso, castigando-os pelo fato de alimentarem-se do fruto da “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”. Assim, Deus profere a Adão: “Com o suor de teu rosto e pelo fruto de teu trabalho, tu comerás o teu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque tu és pó, e ao pó voltará” (Genesis 3:19).
            Mas, como as personagens do grupo In Bust são “crianças”, as mesmas desconhecem esse principio do trabalho. Elas se divertem através do jogo cênico, tornando-se um ponto antagônico entre o mito diretivo e seu conteúdo enquanto peça representada. Atrelado a essa característica, as personagens infantis ainda subvertem a lei das três unidades do teatro (Poética de Aristóteles: ação, tempo e lugar), abrindo espaço ao universo da própria ação mitológica, pois quando o mito é ritualizado pelos atores interpretando “crianças” que brincam de representar o mito de Hércules, temos aí o rito sendo consagrado sob duas formas: enquanto representação mítica, mantendo o conteúdo simbólico (na ação e tempo – em alguns momentos, cronológicos; em outros, subjetivos), e enquanto espaço geográfico, aderindo formas e diálogos locais (que nos revelam o lugar: no caso a cidade de Belém do Pará, Brasil). Como veremos a seguir.
Quando as “crianças” arquitetam os meios para contar a história de Hércules, elas interferem no mito diretivo no sentido de abrir arestas para que o contexto social local perpasse todo o conteúdo do mito original. Como é no caso do linguajar regional, bastante coloquial usado o tempo todo por elas; o acréscimo na fala corriqueira para explicar algum elemento ou passagem do mito original. Este aspecto situa o espectador no “aqui agora” da encenação. Entretanto, essa liberdade poética utilizada na dramaturgia pelos atores é encarada de modo bastante natural, de acordo com o ator Aníbal Pacha, em entrevista concedida em Junho de 2015, para este artigo:


[...] são três “crianças” brincando desse mito. [...] porque o universo já tinha se instalado à partir das nossas escolhas estéticas, dramatúrgicas, e [...] dos elementos que a gente colocou, levaram com que isso fosse uma brincadeira de criança [...] e cada um tem uma personalidade dentro dessa estrutura. No inicio essa peça não era assim. [...] Depois a gente colocou a narração como a brincadeira dessas [...] e a gente acha que tem a questão do clownesco também nos três. Então essa construção vem a partir disso. (Entrevista com Aníbal Pacha, em jun. 2015).

Partindo desta fala, podemos inferir ainda que “o fazer dos atores” (preparação e ensaio da peça) se mistura com o mito de Hércules, quando eles próprios se reconhecem enquanto “crianças” que brincam do mito em questão dentro do jogo cênico onde precisam superar obstáculos da encenação para adequar as cenas ao conteúdo adaptado da história original, pois a partir do momento em que revivem os passos e a ambientação do mito diretivo, eles dão força ao rito do mesmo, trazendo à tona a memória filogenética das sociedades latino e indo-ocidentais, da qual a Grécia Antiga foi o berço. Se tanto para Gilbert Durant, quanto para Carl Jung as manifestações dos arquétipos coletivos dos mitos se repetem independente da época ou cultura, vemos isso ocorrer claramente como uma microestrutura, dentro do universo de encenação dos atores que representam as “crianças” que “brincam” do mito de Hércules.
Invocando Artaud e seu pensamento-força de que o Teatro pode ser utilizado como uma experiência de transformação, ou resgate da energia vital dos seres e da própria vida, podemos inferir que, quando os atores do In Bust iniciam seu jogo cênico, eles automaticamente trazem para a cena o próprio ritual e a “força mágica” comum ao universo de todos os mitos – a transformação do Logos, a reunião da simbologia com a ação concreta do mesmo, pois:

[...] para se atingir o mito, que se expressa por símbolos, é preciso fazer uma equivalência, uma “com-jugação”, uma “re-união”, porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e imediato [...] Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que jorram nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. [...] em resumo: o rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora, o rito comemora. (BRANDÃO, 1986, p. 38-39).

A transformação do Logos acontece em cena todas as vezes que as “crianças” da peça retornam ao seu espaço habitual (que no espetáculo faz referencia à realidade delas); quando há algumas quebras na narrativa do mito em cena (momentos em que as personagens narradoras se desligam da brincadeira de contar a história, para discutirem o “rumo” e as “regras” do jogo); e também quando os elementos e recursos utilizados pelos atores (objetos de cena/cenografia) para representar simbolicamente dados referentes ao mito assumem-se enquanto embalagens recicladas (resignificação imagética). Há também a realidade do mito que extrapola o espaço-tempo da peça, dos atores, e do publico, quando as crianças narradoras se apropriam dos lugares “mágicos” que representam a diegese do mito. É interessante observar como os próprios atores construíram esse espaço-tempo diegético através da escolha e utilização dos recursos cenográficos:

[...] no cenário nós mantemos a ideia dessa coisa de resíduos sólidos. A gente pegou aquelas telas de construção [...] como se fossem quatro colunas gregas separando três mundos: o palácio; e no extremo tem o inferno; no centro a gente elegeu que seria uma área neutra do espetáculo. Não é qualquer um que pode sair por esses portais [...] não tem boneco no palácio. Sempre sai o ator [...] o rei “Euristeu” sempre sai por ali; no meio sai qualquer bicho, [...] e os bonecos sempre estão em cima, que a gente chama de “Olimpo”. E embaixo é o inferno. (Entrevista com Aníbal Pacha, em jun. 2015).

O tempo é apresentado dinâmicamente – tempo das crianças: subjetivo; tempo dos deuses: mítico/histórico; tempo cronológico da peça (onde as personagens interagem com a plateia). Entretanto, por tratar-se de um ritual encenado no teatro, as personagens ganham conotações extras: o duplo papel de quem narra e de quem é atingido pela ação narrada e encenada (o herói e as demais personagens do mito em ação). Podemos elencar esses aspectos à própria jornada de Hércules (que executa as ações e se beneficia delas para seu crescimento psicológico e político). Isso acontece devido ao aspecto transcendental do mito quando efetivamente levado à ação, como explica Junino Brandão (1986):

O rito, [...] transforma a palavra em verbo, sem o que ela é apenas lenda, “legenda”, o que deve ser lido e não mais proferido. À ideia de reiteração, prende-se a ideia de tempo. [...] o rito abole o tempo profano e recupera o tempo sagrado do mito. [...] É precisamente essa reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. (BRANDÃO, 1986, p. 40).

Essa particularidade observada na narrativa dramatúrgica que o grupo In Bust efetivou para a adaptação do mito de Hércules também revela o mito diretivo a partir do momento das escolhas e procedimentos para a montagem. Ou seja, a Arte tem esse poder imaginativo para comunicar o incomunicável, pois é pura invenção.


[2] Termo usado na psicanálise para designar “o local” da mente que armazena a pulsão responsável pelos instintos,  impulsos mais orgânicos e desejos do inconsciente humano, reprimidos no sujeito.



Referências:

ARAÚJO, Alberto Filipe; TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Gilbert Durand e a pedagogia do imaginário. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, n. 4, p. 7-13, out./dez. 2009. Disponível em: < http://wp.ufpel.edu.br/gepiem/files/2008/09/Texto-Alberto-e-Cec%C3%ADlia.pdf > Acessado em: 10/07/2015.

BRANDÃO, Junino de Souza.  Mitologia Gregavol. 1. Petrópolis: Vozes, 1986.

BULFINCH, Thomas, 1796-1867 – O livro de ouro da mitologia: a idade da fábula: histórias de deuses e heróis / Thomas Bulfinch – 9ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

DURAND, Gilbert, O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Trad.: Reneé Eve Levié – 3ª edição. Rio de Janeiro: DIEFEL, 2004.

MARCUSE, Herbert, Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Trad.: Álvaro Cabral – 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

MARTINS, J. Cândido. Campos do Imaginário de Gilbert Durand. Revista Eletrônica Labirinto/. Disponível em: < http://www.cei.unir.br/res1.html >. Acessado em: 10/07/2015.

NEVES, Josélia. Reflexões sobre a Ciência do Imaginário e as contribuições de Durand: um olhar iniciante. Revista Eletrônica Labirinto/ 2001. Disponível em: < http://www.cei.unir.br/artigo23.html#nota1 >. Acessado em: 10/07/2015.

_________________, Definição de Mito. Wikipédia – a enciclopédia livre. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Mito >. Acessado em: 10/07/2015.

SILVEIRA, Rafaella Santos. Principais Conceitos da Psicologia Analítica de Jung. Site Centro Apoio Psicológico. Disponível em: < http://www.apoiopsicologico.psc.br/principais-conceitos-psicologia-analitica-jung/ > Acessado em: 28/07/2015.


_________________, Etimologia do Trabalho. Disponível em: < www.ufgs.br/e-psico/subjetivacao/etim_trab.html >. Acessado em: 10/09/2015.



quarta-feira, 29 de abril de 2015

Relato #4 e #5: Estágio Supervisionado à Docência

MESTRADO ACADÊMICO EM ARTES – PPGARTES/ICA/UFPA
ESTÁGIO SUPERVISIONADO – 4º e 5º dias: 08 e 22/04/2015
DISCIPLINA: Teatro de Animação – Prof. Aníbal Pacha
INSTITUIÇÃO: Escola de Teatro e Dança – Universidade Federal do Pará
CURSO: Licenciatura Plena em Teatro
DIÁRIO DE ATIVIDADES – Katiuscia de Sá



A DESCONSTRUÇÃO DO CORPO DO ATOR PARA
O TEATRO DE ANIMAÇÃO E A EDUCAÇÃO SOMÁTICA


Na primeira vez em que eu trabalhei diretamente com a turma, abri os exercícios do dia com uma aplicação somática. Adaptei os princípios de um exercício proveniente do Body-Mind Centering®, que tive contato no VII Seminário de Dança da UFPA, em 2014. O exercício original foi ministrado pela Profª Drª Marilla Velloso, naquela ocasião. Para eu trabalhar diretamente com os alunos de profº Aníbal, fiz algumas adaptações nos comandos para esta finalidade. A execução do exercício tinha como objetivo, foco e correspondência com o assunto tratado no tópico do conteúdo programático, conforme o andamento das aulas anteriores, que era a desconstrução do corpo do ator para o teatro de animação. O exercício foi em dupla. Segue o passo-a-passo:

a) aquecimento: alunos caminham pelo espaço, se olham, e a um comando escolhem com o olhar com quem desejam executar o exercício. Continuam caminhando em par. Em seguida escolhem um local na sala e se sentam, mantendo as duplas.

b) execução: em dois momentos. (toda execução se desenrola ao som de uma musica instrumental tranquila, relaxante, envolvente). No primeiro momento, um aluno ampara o outro, onde o primeiro se senta de costas para o colega, e este o acolhe sobre seu próprio tórax, de forma confortável para ambos. Então:

1ª) o aluno que está na frente sendo acolhido, de olhos fechados, vai relaxando e aos poucos deixando-se completamente ao amparo do colega que o recebe, como se fosse um boneco totalmente maleável. Seu corpo confia completamente no amparo e cuidado de quem o acolhe. Nesse estágio o aluno que ampara seu colega deve perceber o ritmo da respiração deste e adequar o seu próprio ao do colega, (de forma natural, sem pressa e ao seu tempo). Alcançado isso, acontece o passo seguinte,

2º) com ambos atingindo um único ritmo respiratório, o aluno que acolhe o colega, inicia o processo de concentrar o seu próprio corpo e sentidos para dar vida e movimento ao colega que está agora sobre sua custódia. Então ele pode brincar com o colega explorando cuidadosamente quais movimentos este pode executar (atenta-se nas articulações de braços, pernas, cabeça e o que mais conseguir ser explorado pelo ‘aluno-aparador’). Após uns 4 a 5 minutos. Pede-se que zerem os movimentos. O ‘aluno-boneco’ e ‘aluno-aparador’ levantam-se e caminham novamente pelo espaço, para acordar o corpo. Em seguida escolhem novamente um local na sala, sentam-se e inverte a posição. Recomeça o exercício, até zerarem novamente.

*A finalidade subjetiva dessa aplicação visa acionar a consciência de ‘anima’ que o ator-manipulador deve conferir ao seu objeto de cena. A finalidade de consciência corporal visa ajudar ao aluno perceber a qualidade de estado de atenção que ele deve disponibilizar aos movimentos de seu próprio corpo quando está como ator-manipulador (se ele deve manter-se neutro em relação à cena; ou participar dela; perceber seu rosto se contraí ou não ao executar determinado movimento em seu objeto de cena, observar a precisão de seu movimento/gesto corporal em cena, etc).


 Em seguida ao exercício somático, profº Aníbal introduziu outra dinâmica: todos caminhavam pela sala com velocidade maior (com a finalidade de ‘acordar’ o corpo); com os alunos ainda caminhando pelo espaço, o professor colocou uma enorme mala ao centro, e instigou a quem passasse por perto a abri-la para ver o que havia dentro; depois cada aluno retirava um boneco que lhe agradasse e deixava no chão; os alunos continuavam a andar observando agora cada boneco espalhado para definir em definitivo qual escolheria. Alguns bonecos foram trabalhados individualmente, outros em duplas, outros em trio. Em seguida, fez-se uma disposição de plateia, e um por um ia à cena demonstrar como seu boneco funcionaria (já com as explicações sobre manipulação de bonecos de aulas passadas). No decorrer desse exercício, profº Aníbal ia reiterando as explicações de forma mais funcional.











*Não houve aula no dia 15, em decorrência da paralisação dos docentes.


A aula do dia 22/04 foi totalmente teórica, acontecera numa sala comum com carteiras dispostas em fileiras (até então, todas as aulas anteriores ocorreram na sala de corpo). Essa mudança de espaço fez saltar aos olhos como a disposição da sala de aula ‘clássica’ influencia a postura corporal dos educandos. Em um ambiente mais formal, com os corpos em repouso adaptado às carteiras, o semblante dos alunos mudou. À minha percepção, não estavam relaxados, e sim com uma atenção formal e enquadrada ao espaço reduzido das carteiras; ao passo que na sala de corpo, tanto a disposição espacial dos alunos, quanto a disposição e organização corporal deles era bem mais solta, contribuindo para o aspecto mais afetivo favorecendo o aprendizado. Os alunos ficavam literalmente mais a vontade na sala de corpo (alguns deitados, outros amontoados afetivamente, outros sentados mais confortavelmente como lhes aprouvessem). Nesta aula, profº Aníbal explanou sobre alguns aspectos do teatro de fantoche das regiões do Nordeste brasileiro (mamulengos) focando na questão cultural de cada local onde esse tipo de teatro se manifestava, influenciando no caráter popular desse tipo de manifestação e por consequência, um teatro mais imediato e próximo do cotidiano do publico e por isso mesmo recebendo respostas imediatas dele, influenciando de sobremaneira para a dramaturgia das tramas; (nessa aula foram usados os recursos pedagógicos de slides, vídeos comentados de pequenas apresentações desse tipo de teatro, e um documentário sobre um ‘mestre bonequeiro’ do Nordeste); na segunda parte da aula seguiram os comandos para a formatação das intervenções artístico-pedagógicas que os alunos deveriam executar ao final desta disciplina.




terça-feira, 31 de março de 2015

Relato #3: Estágio Supervisionado à Docência

MESTRADO ACADÊMICO EM ARTES – PPGARTES/ICA/UFPA
ESTÁGIO SUPERVISIONADO – 3º dia: 25/03/2015
DISCIPLINA: Teatro de Animação – Prof. Aníbal Pacha
INSTITUIÇÃO: Escola de Teatro e Dança – Universidade Federal do Pará
CURSO: Licenciatura Plena em Teatro
DIÁRIO DE ATIVIDADES – Katiuscia de Sá




Imagem: Escher




O ANEL DE MÖEBIUS: a desconstrução do corpo do ator

Através de um pequeno exercício prático, a partir da terceira aula, profº Aníbal iniciou a jornada de desconstrução do corpo do ator para a manipulação de objetos. Essa "desconstrução" se faz necessária para que o artista estabeleça num primeiro momento, uma neutralidade expositiva corporal frente ao seu objeto de manipulação - essa é a forma clássica, histórica e tradicional que a arte da manipulação inscreveu ao longo de sua trajetória, posto que na atualidade já há quebras nessa "neutralidade" do corpo do ator bem como abertura para que sua própria figura contracene com o objeto manipulado pelo mesmo (isso foi mostrado nesta mesma aula). 

O exercício consistia em desconstruir a organização das fibras de uma folha de papel sulfite A4 para que depois os alunos a modelassem sem dobrar, fazendo-a se transformar em um objeto 3D qualquer, ou seja, conferindo volume na forma. Depois cada um dava vida ao objeto propondo ações decupadas para os mesmos; nesse ponto, deveriam ter o cuidado para evitar de o ator "aparecer" mais do que o objeto em cena. Esse estado de ação do ator-manipulador é que confere a ânima ao objeto manipulado. Aqui eu faço analogia com o sentido da forma do Anel de Möebius, cujos dois lados se tocam formando apenas um, metáfora que utilizo para fazer compreender o papel do "duplo" do ator se manifestando através do objeto manipulado por ele, sendo que toda energia cênica (ânima) de dentro do ator estará sendo visível através da parte externa do objeto.

Relato #2: Estágio Supervisionado à Docência

MESTRADO ACADÊMICO EM ARTES – PPGARTES/ICA/UFPA
ESTÁGIO SUPERVISIONADO – 2º dia: 24/03/2015
DISCIPLINA: Teatro de Animação – Prof. Aníbal Pacha
INSTITUIÇÃO: Escola de Teatro e Dança – Universidade Federal do Pará
CURSO: Licenciatura Plena em Teatro
DIÁRIO DE ATIVIDADES – Katiuscia de Sá


A PEDAGOGIA COMO CULTURA E A CULTURA COMO PEDAGOGIA


Uma coisa importante na formação dos futuros professores de arte é despertá-los para a questão da Teoria do Currículo: teorias tradicionais; críticas; pós-criticas e teorias depois das pós-criticas, para que eles compreendam essa relação intrínseca entre políticas educacionais, conceitos ideológicos e espaço escolar, com questão que permeiam as entrelinhas dos conteúdos programáticos existentes como "currículo oculto". 

Observei muito o cuidado no discurso pedagógico de prof.º Aníbal durante o repasse das informações referentes ao conteúdo de sua disciplina nesta segunda aula. Esse foi o ponto que mais me chamou atenção. Prof.º Aníbal discorria de forma tão natural e orgânica sobre assuntos transversais, indo direto na parte sensível dos alunos, para que os mesmos atentassem para a valorização da Arte produzida aqui e a construção da identidade cultural local, conscientizando-os sobre o fato do artista ser ao mesmo tempo o sujeito criador que de certa forma também etá educando (em algum grau) o espectador. Essa postura faz com que os alunos atentem para os conteúdos de temas transversais possíveis de serem trabalhados em sala de aula a partir de sua modalidade artística, e também sobre o espaço geográfico cultural e desenvolvimento da comunicação estética entre os valores dos saberes individuais junto ao coletivo numa atividade discursiva.

Como a disciplina requer obrigatoriamente a compreensão e leitura imagética, por se tratar de Teatro de Formas Animadas, o exercício do olhar vai do objeto concreto até atingir o imaginário.


A partir do "imaginário" das coisas, questões como cultura e saber; artista e conteúdo; espaço cultural geográfico e comunicação podem ser traçados. E esse diálogo aberto e discursivo em sala de aula, durante a formação de futuros professores de arte, é o diferencial, pois abre espaço para que aos poucos os agentes se deem conta dessa construção bilateral do saber que as Artes proporcionam.

Profº Aníbal explicou e exemplificou os nomes técnicos e subgêneros do Teatro de Formas Animadas a partir de exemplos locais e através da discussão do imaginário amazônico abriu-se espaço para pôr na roda percepções como:
a) postura sociopolítica incutida na obra do artista;
b) a experiência artística como abordagem metodológica;
c) discussão política sobre a realidade teatral local e nacional;
d) valorização da cultura amazônica como código identitário;

Percebi que a eficácia desse tipo de abordagem pedagógica depende muito da relação horizontal entre professor x aluno, e não funcionaria muito, caso a relação entre eles fosse a “tradicional bancária", como pontua Paulo Freire em suas obras sobre as pedagogias.



Referência:

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ª ed. Belo Horizonte: Autentica, 2010.



quinta-feira, 19 de março de 2015

Relato #1: Estágio Supervisionado à Docência

MESTRADO ACADÊMICO EM ARTES – PPGARTES/ICA/UFPA
ESTÁGIO SUPERVISIONADO – 1º dia: 18/03/2015 
DISCIPLINA: Teatro de Animação – Prof. Aníbal Pacha
INSTITUIÇÃO: Escola de Teatro e Dança – Universidade Federal do Pará
CURSO: Licenciatura Plena em Teatro
DIÁRIO DE ATIVIDADES – Katiuscia de Sá


De acordo com as indicações do professor sobre minha postura em sala de aula durante suas atividades, eu devia evitar interferir em seu processo de abordagem educacional. Por isso o observei dando a aula na maior parte de tempo possível, e também focando nas reações dos alunos no evoluir da aula.
  

PROCESSOS CRIATIVOS EM ARTES (ou experiência artística) & PROCESSOS PEDAGÓGICOS DE ENSINO DE ARTES NAS ESCOLAS

Sob esse foco central durante minha observação de prof. Aníbal em sala de aula, conclui definitivamente de quanto as metodologias participativas são importantes no processo de formação de futuros professores (sejam de Artes ou de outras disciplinas). Como já sou fruto de um longo processo pedagógico dentro desta própria instituição (ETDUFPA), como ex-aluna, eu acho muito natural a qualidade afetiva-sensório-perceptiva-participativa por parte dos professores para com os alunos despertando nestes, também essa qualidade de troca; porém ao me deparar com o ensino regular nas escolas que “não são de artes”, ou seja, escolas de ensino fundamental e básico da rede publica e/ou particulares (nestas ainda há uma melhor qualidade nesse sentido, em alguns casos), que não promovem o processo de corporeidade do educando para desencadear a trajetória de ensino-aprendizagem em sala de aula, sinto um impacto que ainda me incomoda bastante.

Esse impacto é proveniente da falta de envolvimento humano, que revela em cheio a frieza e desinteresse de alguns profissionais da educação em realmente querer prestar uma aula de qualidade com envolvimento afetivo-pedagógico, e isso reflete em cheio na formação de futuros profissionais da área e/ou indivíduos que dependem deles para tornarem-se futuros cidadãos ativos, justamente porque por trás de todo processo social está embutido as “pedagogias invisíveis”, nesse caso quem mais a exerce são os profissionais que estão em evidencia constante para um numero de pessoas subordinadas a eles (em maior ou menor grau) durante o processo. Ex: professores; advogados; chefes de sessões de departamentos; etc.

Mas o foco aqui está na formação de professores. Gostei bastante da postura de prof. Aníbal em sala de aula que ao ministrar o conteúdo programático da disciplina, ele o fez de forma a oferecer para turma uma abertura para esta “construção do conhecimento”, haja vista que foram feitos acordos de convivência em sala de aula os quais também poderiam ser revistos no decorrer da disciplina. Ou seja, o que prof. Aníbal fez no primeiro dia de aula foi dar aos alunos certa autonomia mostrando-lhes a responsabilidade de suas próprias escolhas para o presente e futuro naquele espaço de aprendizagem. E isso é importante para o processo formativo do professor que irá se deparar com obstáculos de ordem afetivo-emocional-comportamental de seus futuros alunos. Além do conteúdo da disciplina os alunos de prof. Aníbal estão “aprendendo” de maneira subjetiva, como conversar com seus alunos; compreender o grau de entrega e participação durante a execução de alguma atividade; desenvolver o respeito e delicadeza para como o outro, etc.; são questões fundamentais para o processo de ensino-aprendizagem em Artes.

Esses quesitos ficam mais acentuados quando percebemos que os processos criativos em artes (ou experiência artística) & processos pedagógicos de ensino de artes nas escolas estão intimamente ligados. Sob essa reflexão veio à tona meu questionamento: para ser professor de Artes nas escolas regulares de ensino, o profissional deve ser artista ou ter passado por alguma experiência de construção artística para ter sua própria abordagem de ensino em sala de aula? A conclusão que eu cheguei, foi sim (considerei também minha própria experiência enquanto artista e arte-educadora para chegar a essa conclusão).

O professor de artes deve ser artista ou pelo menos já ter experenciado algo próximo disso. Porque digo algo assim? Porque o despertar da sensibilidade não pode ser ensinada e sim sentida, é um processo individual e íntimo. Contudo, exercícios para despertar a sensibilidade, a percepção, a cognição, o sentido estético podem ser feitos para se alcançar esse estado. Desse modo pude fazer um link direto com as atividades que prof. Aníbal utilizou em sala de aula. Percebi a importância de oferecer meios para que o pensamento sensível possa ser materializado. Como isso pode acontecer? Através de atividades lúdico-praticas atribuindo movimento e corporeidade no ato do ensino-aprendizagem. Essa discussão é antiga, também defendida em estudos da Fenomenologia. Segundo o conceito de corpo em Merleau-Ponty, a percepção adquire o caráter de mobilidade quando o autor propõe que o conhecimento é gerado e modificado através do movimento físico – que engloba também os atributos ocultos (alma, pensamento, emoções) – como dados importantes no ato de perceber o mundo, conforme observa NÓBREGA, 2008,  pg. 142:

[...] a percepção do corpo é confusa na imobilidade, pois lhe falta a intencionalidade do movimento. Os movimentos acompanham nosso acordo perceptivo com o mundo. Situamo-nos nas coisas dispostos a habitá-las com todo nosso ser. As sensações aparecem associadas a movimentos e cada objeto convida à realização de um gesto, não havendo, pois, representação, mas criação, novas possibilidades de interpretação das diferentes situações existenciais.

Essa corporeidade muito comum (e natural) nas crianças quando elas “jogam/brincam” com as informações e objetos que as circulam é o canal delas para que o processo de ensino-aprendizagem seja eficaz. Mas com o tempo, o ser humano “cresce” e é obrigado a se desligar desse processo natural e isso o deixa limitado em diferentes aspectos cognitivos, dificultando o desenvolvimento sensível desse individuo.

Prof. Aníbal utilizou recursos para sensibilização e leitura de imagens; percepção auditiva; imaginativa; corporal e da fala através de atividades lúdicas que possibilitavam a materialização do pensamento sensível dos alunos, fazendo-os necessariamente perceber de maneira substancial o que estava sendo abordado em sala de aula. E para o universo de teatro animação, essa sensibilidade e (re)conhecimento corporal é importante para o momento em que o ator e seu títere estiverem em contato antes e no momento da cena. Acredito que esse é um meio bastante humanizado para o ensino-aprendizado em Artes: a construção de uma educação sensível, que envolve ao mesmo tempo a cognição e sentido estético como elementos extras.



Referencias:

BOLSANELLO, Débora, Educação Somática: investindo na tecnologia interna. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 24 dez. 2012.

BOLSANELLO, Débora, Corpo Livre e Corpo Possuído. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 21 dez. 2012.

NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty, Estudos de Psicologia 2008, 13(2), 141-148. Disponível em:
www.scielo.br/epsic. Acessado em: 27/02/2015.


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*fotos: Katiuscia de Sá








quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O CADEADO DE HOUDINI


O processo de aprendizagem pode ser encarado como um habitus, passível de ser adquirido, desenvolvido e modificado ao longo da vida de uma pessoa. Segundo a perspectiva de Durkheim, podemos compreender a palavra de origem grega encerrando um fator excludente e perverso dentro do contexto escolar, pois conforme o habitus adquirido pelo individuo dentro de determinada instituição social, este fator pode condicioná-lo para sempre a classes sociais compreendidas como “inferiores” (ou simplesmente sendo formado para ser absorvido pela sociedade como mão-de-obra humana dentro do sistema capitalista). Desse modo ficam as classes operárias destinadas ao ensino profissionalizante, apossando-se deles o fantasma do “currículo oculto” gerando-lhes atitudes passivas e servis, bem como o engessamento do ato reflexivo, do livre pensar e de criatividade para solucionar problemas dentro e fora da sala de aula.

Em contraste com esse tipo de ensino existem instituições particulares onde a grade curricular engloba perspectivas mais amplas, contemplando as grandes áreas do conhecimento, com largo teor artístico e filosófico perpassando as atividades. Ensino este restrito, na maioria das vezes, às classes A e B (normalmente devido ao poder aquisitivo confortável); estas crianças e jovens adquirem e desenvolvem habitus mais refinados, alargando  e desenvolvendo outro tipo de linguagem que os fazem ter uma leitura mais dinâmica de mundo, repleta de conexões, facilitando suas experiências cotidianas, na tomada de decisões em situações complexas. Assim, essas classes naturalmente crescem com a mentalidade de que foram preparadas para estarem no topo da pirâmide capitalista. Têm mais acesso à informação e códigos que os permitem maior mobilidade nas diversas áreas sociais.

Contudo, mesmo com este suposto determinismo do habitus, existem atualmente variadas metodologias de ensino (formal e não-formal) que suprem esse abismo cavado de séculos e séculos entre os liceus profissionalizantes e as escolas elitistas. Um caminho possível é o ensino dos conteúdos através do olhar artístico. Essa alternativa permite que a interdisciplinaridade (pop star da atualidade), possa acontecer durante a construção do conhecimento dentro e fora da sala de aula.

Um forte exemplo desse tipo de pedagogia mais abrangente está em Paulo Freire, atitude amplamente discorrida em seu livros  Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Autonomia e A Importância do ato de Ler, onde Freire comenta de maneira simples e objetiva sobre como se pode atrelar a realidade social através do ensino dos conteúdos, de modo a fazer o educando perceber a beleza de estar desenvolvendo (ao mesmo tempo) o prazer do conhecimento a partir de sua própria visão e experiência de vida, como perceber-se um ator social dentro da engrenagem da sociedade capitalista em que estamos inseridos. Além disso, Freire também alfineta a postura engessada dos professores em sala de aula, abrindo os olhos dos mesmos para uma formação continuada profunda, que os faça modificar o habitus que os deixaram (inconscientemente) como multiplicadores de posturas “bancárias” na relação professor-aluno.

Entretanto, sabemos que apenas essa tomada de consciência, seguida de medidas sócio educacionais permeando o roteiro de ensino-aprendizagem dentro das escolas não basta. Não se pode funcionar como um foco isolado na sociedade, há também fatores econômicos, sociais, culturais, políticos, etc... envolvidos para a permanência desse tipo de ensino “bancário” nas escolas publicas do País.

Penso que o que nós, enquanto professores da modalidade da EJA (Ensino de Jovens e Adultos), podemos nos amparar em nossa postura profissional e ética, estando certos de nossas escolhas dentro e fora da sala de aula. Pois sabemos que existem as politicas educacionais que beneficiam de maneira justa apenas uma parcela da sociedade, e sabemos também que “justiça” e sentido de igualdade dentro desse modelo econômico capitalista ao qual estamos mergulhados, é algo que não se encaixa. O que há são pequenas barricadas possíveis de serem erguidas no meio dessa guerra branca.

Acredito que o professor da EJA quanto mais estiver munido de metodologias outras, conhecimento sobre as leis que regem essa modalidade de ensino, bem como conhecimentos de diversas áreas, facilitará a mobilidade deste profissional em saber se colocar dentro dos ambientes escolares “formais”, pois por incrível que pareça, são nos próprios locais de ensino regular que mais existem resistências e/ou incompreensão da tal “interdisciplinaridade”. O modelo cartesiano está profundamente enraizado em diversos pontos da sociedade que torna quase um truque a la  Houdini (do que algo real), que professores dialoguem entre si para abertura de trabalho inter e extra curriculares nas escolas, para que o corpo docente trabalhe em conjunto visando contemplar essa tal “interdisciplinaridade”...

Por fim, discorro mais sobre o fator benéfico que o ensino das Artes (Teatro, Música, Dança, Artes Visuais) pode proporcionar ao individuo (se realmente) os professores se apossarem dos conteúdos, assumindo a ludicidade de métodos de ensino menos autômatos. Quem conhece a(s) realidade(s) em sala de aula do ensino público no Brasil, sabe da guerra fria e consciente que os professores de Arte travam todos os dias com o conselho escolar das instituições onde lecionam, para o melhor desempenho de seu conteúdo programático da disciplina. Não perderei tempo discorrendo sobre essa guerrinha... Reflito sim, sobre como o professor de Arte pode se fortalecer e ultrapassar esse abismo.

Penso que a sensibilização da criança/jovem pode ser trabalhada em sala de aula através das disciplinas artísticas, a partir do momento em que esses conteúdos se tornam algo com sentido para os educandos. Isso ocorre quando é construído um elo emocional entre o que se compreende dos conteúdos. E nada mais divertido do que apreender conhecimento através da ludicidade, que o próprio material artístico pode oferecer, caso o professor lance mão de metodologias que considerem o repasse desse conteúdo.

Sabe-se que as Artes contemplam refinados mapas cognitivos existentes no universo individual, onde a linguagem reinante é a não-verbal e/ou simplesmente sensorial, daí acontece a mágica de Houdini: a (re)organização do conhecimento interior e exterior ao indivíduo conforme inúmeras possibilidades de escolha. O educando aprende a abrir o cadeado que o encerra na jaula. Começa a tecer conexões entre o que aprende na escola com o que vive de fato no seu cotidiano. E a atividade de compreender os conteúdos escolares torna-se para ele algo prazeroso, com sentido mais profundo, daí conclui-se que o habitus, é passível de ser adquirido, desenvolvido e modificado ao longo da vida de uma pessoa, basta encontrar as chaves certas para que a “mágica” aconteça, pois conforme comenta Débora Bolsanello (2008) acerca de possíveis conflitos que podem ocorrer com a tomada de consciência dos alunos que aderem às práticas de Educação Somática diante das exigências e imediatismos cegos da sociedade atual: “Feldenkrais costumava dizer que quando só conhecemos uma maneira de fazer algo, estamos presos a um padrão. Mas, se conhecemos duas maneiras de fazer algo, temos escolha. E se conhecemos três maneiras de fazer algo? Temos liberdade”.


Escrito em: 01 e 02 de Outubro de 2014

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Referências:

ALMEIDA, Cristiane Maria Galdino de. O multiculturalismo nas políticas públicas para a cultura, artes e música: a educação musical intercultural, in: XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM), Brasília – 2006, p. 99 – 103.

BOLSANELLO, Débora, Corpo Livre e Corpo Possuído. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 21 dez. 2012.

Conselho Nacional de Educação (Brasil). (1999) op. Cit. 
CORAZZA, Sandra, O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, (organização e tradução: Roberto Machado), Rio de Janeiro: Graal 25ª ed., 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: 17ª ed. Terra e Paz, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (coleção Leitura)

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler São Paulo: Autores associados: Cortez, 1989 – (coleção Polêmicas do Nosso Tempo; 4).

HUMMES, Júlia Maria. Por que é importante o ensino de música? Considerações sobre as funções da música na sociedade e na escola. Revista da ABEM, Setembro/2004 Nº 11.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago 2002 Nº 20.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias de currículo.3° Edição. Editora Autêntica. 2010.

TORRES, Renato. Reflexões sobre o ensino da arte na contemporaneidade e suas relações com as teorias de currículo. Disponível em: <www.pucpr.br/eventos/educere/educere2006/.../docs/CI-268-TC.pdf>. Acessado em 02 out. 2014.